Por Angelica Villa Nova de Avellar Du Rocher Carvalho e João Barroca
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Um marco regulatório que honra o passado e projeta o futuro
A aprovação da Resolução Normativa nº 649/2025 pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) marca um momento histórico na trajetória da regulação da saúde suplementar.
Ao modernizar a RN nº 137/2006, a nova norma corrige distorções históricas, fortalece a governança das autogestões e amplia as possibilidades de sustentabilidade e representatividade de um modelo que há mais de oito décadas cumpre um papel social fundamental no Brasil.
A decisão reflete uma agenda regulatória madura e sensível às transformações demográficas e institucionais do país, consolidando o compromisso da ANS com a inovação, a segurança jurídica e a sustentabilidade do sistema suplementar.
Raízes históricas: quando o “grupo fechado” traduzia seu tempo
O conceito de “grupo fechado”, que caracteriza as autogestões, nasceu no início dos anos 2000, nos debates da Câmara Técnica de Segmentação da Câmara de Saúde Suplementar (CAMSS), que subsidiaram a RDC nº 39/2000.
Naquele momento, o propósito era conceituar o que já existia: planos destinados a empregados, aposentados e dependentes de uma mesma empresa ou instituição — em um contexto em que o vínculo empregatício era o principal eixo de proteção social em saúde.
O conceito, portanto, refletia um país diferente, no qual as relações de trabalho eram estáveis e o ciclo de vida produtiva definia o pertencimento.
Duas décadas depois, a realidade é outra: novos arranjos familiares, vínculos múltiplos e a expansão da longevidade desafiam o modelo a reinterpretar o significado de grupo e pertencimento.
O século da longevidade: novos perfis, novos desafios
Vivemos o século da longevidade.
De acordo com o Panorama da Saúde Suplementar (ANS, 2024), mais de 7,66 milhões de beneficiários com 60 anos ou mais integram o sistema suplementar — o que representa 15% do total de vínculos ativos.
Entre eles, 10.840 têm 100 anos ou mais, correspondendo a 28,6% de todos os centenários brasileiros.
Esses números mostram que a saúde suplementar acompanha o envelhecimento do país e, em muitos casos, antecipa soluções que fortalecem a vitalidade da população idosa.
As autogestões, historicamente pautadas pela solidariedade e pela ausência de fins lucrativos, convivem há décadas com esse fenômeno, acumulando aprendizado real sobre sustentabilidade e cuidado continuado.
Autogestões: um paradigma de resiliência regulatória e demográfica
Entre os segmentos da saúde suplementar, as autogestões se destacam por sua resiliência.
A Pesquisa Nacional UNIDAS (2023) indica que 27,9% de seus beneficiários têm 60 anos ou mais — quase o dobro da média do setor — e que o índice de envelhecimento atinge patamares inéditos, especialmente nas operadoras de menor porte.
Mesmo diante dessa realidade, essas entidades mantêm programas robustos de prevenção, atenção primária e gestão de crônicos, evidenciando capacidade de adaptação, eficiência e compromisso social.
São instituições que resistiram ao tempo, às transições regulatórias e às pressões econômicas, sem abdicar de seus valores mutualistas e do cuidado centrado na pessoa.
Maturidade demográfica e aprendizado institucional
Por conviverem com carteiras envelhecidas há décadas, as autogestões chegaram antes ao futuro.
Desenvolveram — por questões de sobrevivência — uma expertise prática em coordenação do cuidado, programas de atenção primária e modelos de financiamento mutualista, aprendendo a equilibrar custos crescentes.
Essa experiência as tornou laboratórios vivos de longevidade, com aprendizados que hoje se tornam cada vez mais valiosos para todo o sistema suplementar.
O que antes era uma particularidade das autogestões, agora se converte em um desafio estrutural para todo o setor de saúde, que precisará aprender a envelhecer sustentavelmente.
Ainda assim, há um campo promissor para avançar.
Será fundamental investir em novos modelos de negócio, compartilhamento de riscos e linhas de cuidado estruturadas, capazes de assegurar uma assistência de qualidade, sustentável e alinhada ao pacto social que o país deseja firmar — um pacto que reconheça a longevidade como ativo e não como custo.
Inovação Regulatória: o tempo dos experimentos.
A realidade do envelhecimento no Brasil – e em particular no coletivo assistido pelas autogestões vai continuar impondo desafios, para além das alterações regulatórias apresentadas.
Vão exigir novas soluções, criatividade e inovação na forma de prestação de serviços aos seus associados. Para além do compartilhamento de rede, da possibilidade de novos patrocinadores e da ampliação da elegibilidade a realidade terá de ser acompanhada por grandes mudanças relativas aos modelos de atenção à saúde.
Essas mudanças têm de ser acompanhadas por projetos estruturados com impacto e metas previamente definidas. O fortalecimento da participação dos associados na governança institucional deverá trazer forte necessidade de prestação de contas.
No entanto, este novo cenário deve ser encarado pela sociedade como fonte de inovação – sempre trazendo para o centro da avaliação a participação do associado e os desfechos obtidos.
Ainda: a ANS poderá acompanhar os projetos e resultados das mudanças nas autogestões, beneficiando, certamente, toda a sociedade – na medida que tais resultados e projetos serão compartilhados por todos.
Trata-se de evoluir de uma regulação prescritiva para uma regulação que aprende, baseada em dados, valor e cooperação — fundamentos de um ecossistema preparado para o envelhecimento e para o futuro.
Conclusão: o futuro é da longevidade
A RN nº 649/2025 não é apenas uma atualização normativa.
É um ato de reconhecimento histórico e um convite à inovação, que projeta o futuro das autogestões dentro de uma agenda mais ampla de sustentabilidade, confiança e pertencimento.
As autogestões, que nasceram de um ideal de solidariedade, podem novamente constituir-se em instrumento de interesse público, contribuindo para o fortalecimento do sistema de saúde brasileiro – especialmente ao abarcar beneficiários que não encontram acesso aos planos de saúde nos modelos tradicionais.
Os idosos não apenas crescerão em número — eles redefinirão o modo como vivemos, produzimos e cuidamos.
A inovação que não enxergar a longevidade como potência perderá a chance de participar do futuro.
Não podemos desconsiderar os novos paradigmas da autogestão neste processo de inovação regulatória.
Referências
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Resolução Normativa nº 649, de 31 de outubro de 2025.
ANS. Panorama da Saúde Suplementar, v.5, n.6, outubro de 2024.
UNIDAS – União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde. Pesquisa Nacional UNIDAS 2023.
Câmara de Saúde Suplementar (CAMSS). Ata da 14ª Reunião da Câmara Técnica de Segmentação, 2000.
Futuro da Saúde. “Nova resolução da ANS moderniza regras para autogestões.” 31 de outubro de 2025.
Grupo IAG Saúde. “Envelhecimento populacional desafia autogestões na saúde suplementar.” Abril de 2024.
Consumidor Moderno. “Autogestão e o cuidado com os idosos na saúde suplementar.” Setembro de 2024.

