O primeiro desafio da carreira da Dra. Júlia Pinheiro Machado não está sendo pequeno. Sua formatura em medicina foi antecipada e, em seguida, ela foi para a linha de frente do combate ao Novo Coronavírus. Ela assumiu a função de médica generalista na Vila Germânica, ambulatório referência para o atendimento de casos suspeitos de Covid 19 de Blumenau. Neste período Júlia perdeu o avô para a doença e ela mesma foi contaminada. Percebendo que as pessoas tinham dúvidas básicas sobre a pandemia, criou um perfil no Instagram (@jubanapandemia) para compartilhar seus conhecimentos e experiências de médica e paciente. Com o fechamento do ambulatório da Vila Germânica, ela foi para os ambulatórios onde alterna atendimento clínico sob a Estratégia de Saúde da Família e atendimento aos casos suspeitos de COVID19 no Ambulatório Geral Garcia.
SIM – Dra. Júlia, como foi e está sendo a experiência de trabalhar na linha de frente de atendimento a pacientes de covid-19?
Júlia Pinheiro Machado – Atuo nos ambulatórios referência ao atendimento, orientação e primeiro manejo dos pacientes que se enquadram como suspeitos. Acredito que em todos os níveis de atenção à saúde, realizar esse tipo de atendimento é um desafio constante, pois ainda estamos aprendendo sobre a doença, como diagnosticá-la, manejá-la e quais os principais cuidados que devemos tomar. Os protocolos estão mudando constantemente e precisamos nos manter ativos na atualização sobre as novas evidências que surgem diariamente sobre a saúde e a Covid 19. Além disso, a pandemia nos trouxe demandas não previstas e para as quais não fomos treinados, como a demanda em saúde mental de pessoas e famílias que estão enfrentando o luto de entes queridos sem direito a cerimônias de despedida ou de pessoas que estão sendo obrigadas a permanecer isoladas e encarar esse momento de incertezas, ansiedades e medos que a pandemia reverbera sobre todos nós.
Vale ressaltar ainda que, como profissionais de saúde, também tememos a doença; tememos contaminar os nossos amigos, cônjuges e familiares. Perdemos ou acompanhamos internações difíceis e prolongadas de colegas (às vezes jovens e saudáveis) que se dedicaram conosco integralmente a essa batalha e, quando estes estiveram ausentes, tivemos que duplicar a nossa jornada de trabalho, nos exaurindo quando mais precisamos de apoio e um respiro…
Acho fundamental citar o desafio de lidar com as desconfianças da população, muitas vezes estimulada por um governo que divulgou práticas médicas sem evidência de seu benefício e deixou a população à deriva, com poucas informações e pouco senso de responsabilidade coletiva sobre o enfrentamento desse momento. Afinal, nosso trabalho como profissional de saúde nesse contexto se torna inútil sem a confiança e o apoio da população em seguir as orientações e respeitar as únicas medidas que se mostraram eficientes até o presente no combate ao novo coronavírus: distanciamento social, o uso da máscara e a higiene constante de superfícies e mãos.
SIM – Você foi contaminada, como foi a experiência de paciente?
JPM – Eu me contaminei 4 dias após a notícia do falecimento do meu avô, também vítima do Novo Coronavírus. Esse contexto com certeza dificultou o processo, uma vez que a dor e o cansaço são sintomas subjetivos que sofrem grande influência do nosso estado emocional. Felizmente, meus sintomas foram leves apesar da prostração inicial. Eu entendi muitos relatos de pacientes meus, o que me fez estudar alguns aspectos curiosos da doença. Entendi, por exemplo, por que a ardência no nariz poderia preceder a perda do olfato, e como o olfato é um sentido muito mais importante do que imaginamos… Percebi alguns aspectos subjetivos que, com certeza, me ajudaram a “acertar” mais no atendimento a casos suspeitos, e também a abordar algumas angústias e anseios dos pacientes, que transcendem a realização do diagnóstico e prescrição de medicações.
SIM – Como foi a ideia de criar um perfil de Instagram para orientar sobre a pandemia? O que te motivou? Que resultados observou?
JPM – Eu comecei a perceber que as dúvidas em saúde muitas vezes se repetiam, e eram dúvidas aparentemente simples, mas que carecem de uma explicação simples e bem fundamentada. Eu ainda sinto uma dificuldade enorme em aproveitar toda a potencialidade de uma mídia social (talvez pela minha baixa expertise no tema e pelo pouco tempo disponível para me dedicar a isso agora), porém sinto que o pequeno retorno que tenho de pessoas que entram em contato comigo para sanar dúvidas e agradecer pelas informações divulgadas já faz todo o trabalho valer a pena. Por meio do Instagram, pude realizar atendimentos virtuais a pessoas que estavam com sintomas e não tinham acesso ao serviço de saúde, ou que quiseram evitar expor mais pessoas antes de entender se era, de fato, necessário buscar um serviço de saúde. Assim, sinto que posso amplificar o alcance do meu trabalho e nosso principal objetivo neste momento: manter as pessoas informadas, cientes da sua responsabilidade no combate à pandemia e auxiliar na redução do trânsito de pessoas possivelmente contaminadas. Apesar de ainda possuir poucos seguidores, o Instagram também se tornou um canal para falar em empresas, revistas virtuais e conhecer trabalhos muito legais de outros profissionais que – assim como eu – buscam uma assistência em saúde mais integral e mais inclusiva.
SIM – Um tema que você abordou no perfil diz respeito do impacto do Covid 19 especificamente sobre as mulheres. Elas sofrem mais na pandemia do que os homens?
JPM – Apesar da Covid 19 atingir homens e mulheres igualmente, os homens parecem assumir com mais frequência a forma grave e morrer da doença. Os motivos disso ainda não estão claros (teorias variam entre o estilo de vida do homem até mudanças estruturais cromossômicas). No entanto, o impacto social e econômico da pandemia sobre as mulheres é com certeza maior. Isso se dá devido a um fato histórico de que as crises nunca são neutras no que se diz respeito ao gênero, e o mesmo vale para esta pandemia. As mulheres historicamente e globalmente ganham menos; têm menos reservas econômicas; estão em maior número inseridas no mercado de trabalho informal; têm menor acesso a proteção social; são mais propensas a serem sobrecarregadas com cuidados não remunerados e trabalhos domésticos, tendo que abandonar a força de trabalho, e as mulheres constituem a maioria das famílias monoparentais.
Em um artigo publicado no The Lancet em agosto desse ano, a autora cita que cerca de 243 mil mulheres no mundo sofreram de abuso físico e/ou sexual por um parceiro íntimo em algum momento nos últimos 12 meses. O governo francês estimou que na primeira semana de quarentena, os índices de violência doméstica no país aumentaram em 30%. Além disso, há o risco maior sobre as gestantes e lactantes que, durante a pandemia, tiveram acesso dificultado aos serviços de pré-natal; orientação e apoio sobre a amamentação e ainda não puderam contar com o apoio de babás e/ou creches e escolas.
SIM – Como você projeta a situação da pandemia até o final do ano? Está vindo uma segunda onda como na Europa?
JPM – Falar sobre projeções é muito difícil. Os casos variam conforme o comprometimento da gestão municipal, estadual e federal atual, e da população em seguir as medidas de prevenção ao contágio. Esperávamos que os casos não voltariam a subir no verão, pois já sabemos que o novo coronavírus é sazonal, ou seja, que se propaga melhor nas estações frias – preferencialmente em temperaturas que variam de 5 a 11 graus Celsius. No entanto, às vésperas das eleições municipais, vimos a liberação de muitas atividades que favorecem aglomerações, como a reabertura de casas de festas, cinemas, teatros etc. Nesses locais, os casos confirmados e o número de morte estão crescendo de forma acelerada e, para ajudar, pouco se fala sobre na mídia. Com um país continental como o Brasil e com a dificuldade de manter as pessoas dentro de casa (isso se dá também pela desigualdade social e a falta de escolha para uma série de parcelas da sociedade brasileira), o que prevemos são várias ondas, em diferentes regiões, até que consigamos uma vacina efetiva ou um tratamento efetivo contra a doença.
SIM – Logo ali temos verão, férias, festas… Que cuidados achas que as pessoas devem tomar neste momento?
JPM – Os cuidados devem permanecer os mesmos. Infelizmente, não é por que os casos começaram a cair que podemos dizer que a pandemia acabou em algumas regiões. Teremos que sempre tomar decisões pautadas em pelo menos 3 informações fundamentais: 1) Como está a Covid 19 no seu município; 2) Seu risco individual e de seus familiares; 3) Qual o risco das atividades que serão retomadas. Além disso, acho que é importante entender que certas medidas vieram para ficar, como o uso da máscara em ambientes públicos e o entendimento de que nossas ações impactam sim a saúde física e emocional do próximo.
Apenas superaremos essa pandemia com o menor número de mortes possíveis se pudermos contar com as ações individuais, com consciência sobre o seu impacto coletivo. Portanto: se você está com sintomas gripais, busque um médico e não se encontre com ninguém. Se você possui contato com pessoas que compõe o grupo de risco, evite se expor a ambientes fechados e com aglomerações. Mantenha sempre as mãos e superfícies limpas, não compartilhe itens de uso pessoal, etc… Infelizmente, teremos que dar preferência às festas com poucas pessoas, em ambientes abertos e sem compartilhamento de copos, talheres etc. A praia também deve contar com um distanciamento mínimo de 1,5 a 2m de distância entre as pessoas para se manter como um ambiente seguro, e é fundamental que pessoas doentes (mesmo que com simples resfriados ou outras viroses) não circulem em ambientes públicos na vigência dos sintomas.